Luís Guilherme Freza Situação da polêmica
No ano de 2024, a tão aguardada polêmica em relação ao uso de inteligência artificial finalmente atingiu de maneira mais sistemática o universo do cinema e serviu, ao menos, para sacodir um pouco a poeira das empedernidas e enfadonhas premiações da Academia. Mas qual não é nossa surpresa, após tanto tempo de espera, ser de maneira um pouco singular que esse estopim vai a termo… Filmes totalmente esperados dentro do paradigma, como O Brutalista (The Brutalist, Brady Corbet, 2024), ou Emília Pérez (Jacques Audiard, 2024), suscitaram mini-controvérsias em relação a aspectos isolados de uso das IA’s. Nenhum outro filme, porém, acendeu o debate como Here (2024), de Robert Zemeckis.
Here tanto não faz o uso modesto da tecnologia que se esperava, quanto simplesmente não é o filme em que se esperava ver isso acontecer… ao menos não para mim, e certamente também não para os entusiastas do que aqui chamarei de “cinema de atrações”, tanto em referência ao que a “montagem de atrações” de Eisenstein significa na teoria do cinema como um todo, quanto em tentativa de estabelecer uma continuidade (embora com suas óbvias diferenças) com aquilo que Scorsese há alguns anos chamou de “parque de diversões do cinema” em referência aos recentes filmes de super-herói, modelos do gosto das massas contemporâneas.
O filme de Zemeckis utilizou uma tecnologia de IA criada pela empresa Metaphysic não só para recriar boa parte dos cenários, não só para rejuvenescer atores, como já havia sido feito em várias outras produções, mas para representar Tom Hanks, Robin Wright, Paul Bettany e John C. Reilly em até cinco fases diferentes da vida. E a maior inovação: tudo isso por imagens geradas simultaneamente, em tempo real, no set de filmagem, enquanto a gravação das interações reais e atuais dos atores acontecia. Por que fazer dessa forma, quando as ferramentas de edição que temos hoje, a pós-produção digital e os variados efeitos de VFX, permitiriam que tudo fosse feito de maneira mais simples (do ponto de vista da evolução do aparato) e “tradicional”? Toda a tecnologia em Here trabalha para a continuidade de espaço e tempo, de ação dramática, de elementos da visão (na profundidade de campo construída com os detalhes acrescidos pelo digital), de planos-sequência que desfilam sobre um único ângulo de um único cenário: a sala de estar de uma casa. E por que priorizar esses efeitos, se, claramente, o que conquista o público contemporâneo é, em geral, o contrário do que estou elencando?
O realismo e as atrações: um desenvolvimento histórico
Here constrói-se sobre um paradoxo que nos leva diretamente à disputa de origens e essências do que chamamos de cinema. André Gaudreault e Philippe Marion (2016) teorizam que o uso crescente da tecnologia para a manipulação de imagens nos filmes traz de volta a série cultural da animação como essência e princípio estruturante do audiovisual. Ela que, estando presente de maneira determinante na aurora dos primeiros experimentos de cinema, acabou sendo relegada a um lugar periférico pela série-cultural da captação-restituição da imagem natural, ou live-action, que é o que hoje se entende quase exclusivamente por “cinema”, tamanha foi a força dessa exclusão, vinga-se com toda a potência de um reprimido que retorna (o unheimlich freudiano). Junto a isso, retorna toda uma centralidade da atração em lugar da narração. O valor dos filmes passa a depender mais das sequências isoladas, dos estímulos isolados, que de um enredo coerente ou de uma representação — de algo, enfim, que satisfaça nosso desejo por identificação.
Não há, nesse desenvolvimento das formas e de suas teorias, nada que não siga um percurso já traçado previamente pela arte ocidental de maneira geral, e mais especificamente pela literatura, seu análogo mais próximo, sobretudo se passamos a considerá-los ambos (literatura e cinema) enquanto “artes narrativas”. Tendo suas origens em diversos corpus fragmentários, em mitos, lendas, sagas, contos orais, gestas, chistes — tudo aquilo que André Jolles (1976) chama de “formas simples” —, atrações por excelência, a literatura também se estabelece enquanto representação coerente da história de um determinado indivíduo e de suas apreensões únicas de mundo apenas na modernidade, em sua forma característica: o romance. Até o fim do medievo, o tipo de ficção predominante nas novelas de cavalaria e nos gêneros do romanceiro, dependente não de uma sensibilidade particular identificando a si o mundo exterior, mas de todo um cosmos a agir determinantemente, com seus eventos vários e dispersos, sobre os fios dos destinos (pode-se pensar, pela maior proximidade da imagem, nas aventuras de Dom Quixote que nos vão dando gradativamente uma visão geral da sociedade em seu contexto), estaria muito próximo desse espetáculo de atrações que Gaudreault e Marion observam nas séries de desenhos animados, nas lanternas mágicas, nas exibições de vaudevilles, etc.

O historiador alemão da arte Wilhelm Worringer (1997), em sua famosa teoria sobre a abstração na pintura contra o “realismo” das formas, mostrou que a identificação (empatia), marca da obra que chamamos de “realista”, é um télos básico das sociedades ocidentais, e que, portanto, situa-se em um estágio avançado de desenvolvimento das técnicas. Inicialmente, o homem só consegue reproduzir as forças inescrutáveis de um exterior que lhe é alheio, hostil; sua visão é como a de qualquer bebê ao nascer em um ambiente completamente opressor, contra o aconchego do útero no qual antes encontrava-se instalado.
Domesticar essas forças da natureza, fazer do mundo sua imagem e semelhança para, então, poder dominá-lo, sentir-se confortável em sua presença, é uma necessidade básica do homem que só pode atuar como uma utopia — já que a completa identificação é impossível —, sendo, em verdade, a utopia basilar da arte no Ocidente. Mas, antes de completamente linear, o percurso é cíclico. Rupturas em dinâmicas sociais e maneiras de pensar os modelos estéticos promovem revoluções e fazem com que os paradigmas antigos ressurjam. O homem age como Robinson Crusoé ao escapar do naufrágio e chegar a um mundo totalmente novo para colonizá-lo. De seus mínimos restos salvos da grande perda, ele precisa refazer o processo e lançar as bases de uma outra aproximação do novo exterior hostil aos seus anseios e desejos. Modelos primitivos renascem com toda a força: o abstracionismo das vanguardas na pintura, a reelaboração do mito no romance modernista, a lógica de atrações no cinema… Todavia, isso é apenas um novo passo na caminhada à identificação. O modelo mimético, porque mais humano, mais universal, a falar com todos os homens e cada um ao mesmo tempo, é o oásis seguro que dificilmente sairá de moda. A história que sempre fará as técnicas caminharem no Ocidente é, por fim, a história do realismo (ou melhor dizendo, dos realismos) e de suas definições.
Todos que conhecem um pouco de teoria do cinema pensarão imediatamente, ao ler tais palavras, em André Bazin e seu “mito do cinema total”. A especialidade de Bazin no cânone enquanto representante máximo da “teoria realista” em cinema faz com que seja tanto um ponto de confluência das teorias que aqui estamos discutindo, na medida em que o cinema as carrega consigo e eleva-as a níveis antes impossíveis (como Bazin bem discute em “Ontologia da imagem fotográfica” e “O mito do cinema total”, textos que abrem a coletânea O que é o cinema?), quanto uma referência inescapável para pensarmos os efeitos gerados pelas escolhas de um filme como Here.
Chegando a termos com Bazin
Não se trata aqui de defender que Bazin apreciaria muito um filme como o de Robert Zemeckis. Estamos na ingrata empreitada de discutir algo que o autor, talvez, nem consideraria como cinema em absoluto. Sabemos o quão importante é, para Bazin, a autoridade do registro da câmera sem falseamentos, a realidade que se impõe sobre a película integrando o imaginário e vice-versa, como aconteceu de maneira perfeita uma única vez na história do mundo com o Santo Sudário de Turim. Imaginar tudo isso acontecendo com o próprio processamento automático das imagens obtidas pela câmera digital, quem dirá com o uso das IA’s, talvez seja muita extrapolação. Trata-se, no entanto, não de reencontrar hoje as causas bazinianas para produzir um belo filme, em uma busca purista daquilo que está, possivelmente, perdido em definitivo, se formos nos ater austeramente à scriptura baziniana; antes, trata-se de poder pensar os efeitos bazinianos que tais filmes possam obter para, no mínimo, ter deixado um franzir de cenho no crítico francês caso os pudesse assistir e ver, ali, paradoxalmente operada, a experiência artística que valorizava. E, conforme esperamos demonstrar, os efeitos são facilmente apreensíveis para servir de base a uma análise mais aprofundada do pensamento de Bazin em como ele pode ter aplicação real para pensar novos filmes e regimes de produção mais abrangentes, observando que determinados filmes podem ter uma especialidade, no sentido de guardar preocupações e valorizações que podem parecer modismos, mas são tão antigas quanto a própria teoria do cinema.
A história que até então estivemos traçando chega tão bem adaptada ao cinema como uma vocação natural, e a utopia representativa de que trata Bazin explica tão bem o futuro do cinema, que não se torna difícil perceber o porquê de Avatar (2009), de James Cameron, ter se tornado o filme de maior bilheteria da história, com sua continuação, Avatar: O Caminho da Água (Avatar: The Way of Water, James Cameron, 2022), como o 3º lugar. Luiz Carlos Oliveira Júnior (2009) bem apontou, em uma crítica do filme à época, como ele se utiliza de uma linguagem própria do cinema clássico em busca desse efeito de imersão que é capaz de atingir a todos. Éric Rohmer, que chamou ao cinema “a arte clássica do século XX”, compreendeu que o classicismo pertence ao futuro, está sempre à nossa frente (Oliveira Júnior, 2009). Bazin certamente traria uma contradição ao debate. Por várias vezes, ele criticou a transparência do cinema clássico por limitar e comandar muito a visão e não fornecer a complexidade visual libertadora que valorizava na profundidade de campo, no plano-sequência, no filme com poucos planos e poucos raccords, etc. Além de tudo, Gaudreault e Marion (2016) observam que o digital leva a máximo cumprimento o caminho de ontologizar a trucagem, isto é, torná-la a mais natural possível, fazendo com que os efeitos do realismo psicológico traiam o real em si. Bazin já reconhece essa possibilidade a partir da própria montagem, como mostra em “Montagem proibida”, ensaio presente em O que é o cinema? (Bazin, 2024), em filmes como os de Jean Tourene. Em The Secret of Magic Island (Une fée… pas comme les autres, Jean Tourene, 1956), o crítico aponta que Tourane tenta fazer um falso Walt Disney (isto é, um filme maravilhoso, em que viveríamos as emoções e aventuras dos animais), mas todo o truque acaba recaindo em procedimentos de montagem que nos permitem identificar-nos a esses animais apenas na medida em que lhes atribuímos características humanas pelos procedimentos Kuleshov. The Secret of the Magic Island termina não sendo nem um filme maravilhoso, nem um filme documental (nem Feéria, nem mundo, na clássica distinção de Godard), mas um meio termo insosso entre os dois.
Não haveria, portanto, no digital do qual Avatar é modelo e ponto de inflexão, um grau máximo do risco de ilusão que Bazin tanto critica na arte refém do avanço das técnicas, do século XVI com o trompe l’oeil até seus dias do pós-guerra? Não estaríamos, com o digital da animagem, conforme Gaudreault e Marion (2016) nomeiam esse regime misto de animação e encenação (captação-restituição do real), ainda mais a correr esse risco de uma magia que priorize efeitos de um realismo meramente psicológico? Talvez devêssemos buscar respostas, ou, antes de respostas, elementos para tensionar mais as contradições, questionar noções estabelecidas tanto para Bazin quanto para esse cinema classicista mainstream, em um filme que não busca esconder seus truques, mas usá-los em suas mediações fronteiriças, em suas ligaduras impolidas, ao mesmo tempo que em um continuum do real, como a própria força da transformação dessa matéria bruta do mundo.
Retomemos as continuidades do filme de Zemeckis. “Ora, a profundidade de campo, o plano-sequência, a concentração espacial, são características queridas de Bazin, sim. E daí? Não pode ter qualquer coisa a ver com sua teoria um filme em que essas coisas não sejam hauridas da ‘realidade’”, alguém que conheça superficialmente o pensamento baziniano diria. E, em um certo sentido, essa pessoa estaria certa; mas tão somente na medida em que, não conhecendo, em sua época, o paradigma digital, Bazin não nos deixou senão balizas para pensarmos de que maneira, não sendo mais viáveis (materialmente) as causas que pregava serem essenciais ao cinema, os efeitos que buscava a partir dos filmes-chave que analisou teriam algum diálogo ou paralelo possível nos dias de hoje, conforme já argumentamos.
Bazin: um realista? Em que sentido?
Aqui se impõe a grata tarefa de aprofundar nosso objeto para desfazer alguns preconceitos nocivos ao pensamento sobre arte como um todo. Bazin é vítima, sobretudo, de uma leitura ingênua sobre o “realismo” que quer refletir nele sua própria ingenuidade. Geralmente, acredita-se que todas essas características que valorizava nos filmes visavam aumentar seu caráter de notação, de cópia (mimesis) do real, no mesmo sentido que Platão a concebe no livro X da República, talvez, contudo, com uma valoração mais positiva. Mas o mesmo Bazin escreveu, em seu célebre “William Wyler ou o jansenista da mise em scène”: “A realidade não é a arte, mas uma arte ‘realista’ é aquela que sabe criar uma estética integrada à realidade” (Bazin, 2018); ainda mais incisivamente, o mesmo Bazin lamentou, já no cinema de seu tempo, em uma crítica de Farrebique (Farrebique ou Les Quatre Saisons, Georges Rouquier, 1946): “que a verossimilhança tem gradualmente tomado o lugar da verdade, que a realidade se dissolve em realismo” (Bazin, 1997, p. 106, grifo do autor, tradução nossa).
O uso desses termos por Bazin não é aleatório ou ingênuo. Católico convicto e motivado pela espiritualidade e intelectualidade católicas (pois não haveria sentido em gravar ou analisar qualquer fotograma, qualquer gesto, qualquer semema audiovisual, se ele, uma vez acontecendo do lado de cá, não estivesse inscrito na eternidade e não nos levasse a ela), quando fala em “realidade”, ele está pensando muito menos no sentido do senso comum em que o empregamos que no sentido que o termo possui para a escolástica, aquela que mais pensou a arte medieval tão estudada pelo teórico francês — e, consequentemente, o verdadeiro procedimento “realista” é o da filosofia tomista. Isso se confirma quando Bazin ilustra o efeito central da arte visual para si, mantido desde suas origens religiosas, visualizado na estatuária como na fotografia: “salvar o ser pela aparência” (Bazin, 2024, p. 27). Ser e realidade, para o tomismo, são uma só coisa: a Ideia, que é a essência de qualquer objeto subsistente por trás de sua aparência; a Ideia, o ser, é como ele se comunica e como nós participamos nele para o conhecermos. Portanto, um laço que nos une a todas as coisas do mundo.
Perguntar o que é o ser, é perguntar o que vem a ser esta coisa que nos aparece. E como havemos de responder, sem dizer antes em que consiste o aparecer e o que é que o aparecer acrescenta ou não acrescenta à realidade, para podermos declarar: isto é a parte do objeto; isso, a do sujeito; aquilo finalmente a parte comum? O ser, em última análise, é isso (Sertillanges, 2019, p. 39, grifos do autor).

Bazin usa mesmo termos muito próximos a esses ao descrever o que seria a verdadeira estética realista de cada época: “a técnica e a estética que melhor são capazes de captar, reter e restituir aquilo que se quer capturar da realidade” (Bazin, 2018, grifos nossos) — o que deu nome ao paradigma da “captação-restituição” já mencionado. Não prestáramos então suficiente atenção a essas palavras enigmáticas. Como poderíamos restituir algo à realidade, algo que já não estivesse lá? É só por essa noção metafísica do ser que podemos entendê-lo.
O que devemos compreender a partir daí é, primeiramente, que não ter uma cópia ou reprodução fiel da realidade não é um impeditivo final para a teoria baziniana. Algo que apenas reproduzisse tal realidade poderia terminar em um mero realismo psicológico próprio da ilusão, da prestidigitação, que Bazin repudiava — como repudiou a respeito da pintura renascentista do trompe l’oeil e dos filmes que buscavam oferecer um efeito puramente documental se o objeto tal não o exigisse. Ao contrário, as fronteiras, mediações, encaixes e desencaixes entre o real e o imaginário são sempre necessários. Em uma leitura sobremaneira revolucionária da estética baziniana, Serge Daney, após reconhecer tudo que Bazin tributa à artificialidade da representação como valor necessário para salvar o cinema — em Ladrões de Bicicleta (“Ladi Di Biciclette”, 1948), o fim da mise-en-scène levaria ao fim do cinema enquanto tal, reconhece nosso autor —, conclui: “Se é preciso salvar o ecrã para que a representação viva, o que representar agora nele senão essa mesma salvação?” (Daney, 2016, p. 62-63).
Here (2024): vencer o tempo pela perenidade da forma
Voltemos, uma última vez, aos procedimentos de Here. O que há ali para ser salvo? Não é apenas uma aparência, um índice de realidade, um estado, um momento da vida, tampouco uma época. Temos diante de nós o filme que melhor compreendeu que esses limites suicidas do real e do virtual podem e devem estar combinados se — e somente se — o que há por trás é um ser que os une a deixar seus rastros verdadeiros — e que toda a história humana é uma tentativa malograda de salvar, pelos próprios esforços, essa essência da qual um único vislumbre de uma única forma que se mantiver realmente intacta e preenchida de humanidade chegará mais próximo que tudo de alcançar.
A história do filme é a própria história da decadência, como o é a História (do mundo e do homem), tão assinalada como a busca romântica do mito e do retorno o faria. A imagem mais falsa que surge em tela, mais perceptível em sua irrealidade digital, em sua saturação de cores, brilho, contornos impolidos, é também a mais idílica: o estado de natureza, o antes da corrupção por excelência, o amor puro e idealizado dos povos originários que tão bem conhecemos como a origem da sociedade, da nação. Fazer existir no mundo é inaugurar a decadência. Tudo em Here, segundo o argumento e o roteiro do filme, decai. A civilização abandona a comunhão com a natureza; as famílias decaem em número de pessoas e fixidez de relações entre elas; essas relações familiares outrora purificadas vão se desgastando mais e mais e tornando-se mera convenção. O amor puro e genuíno que vemos entre os dois índios dá lugar ao amor que tenta ser o mais verdadeiro possível, estabelecido na família principal que acompanhamos, entre o filho mais velho (Richard) interpretado por Tom Hanks e sua primeira paixão da adolescência, a jovem Margaret interpretada por Robin Wright. Mas logo os problemas da vida contemporânea interpõem-se para destruir os planos desses jovens: um filho não-planejado, palavras somente concebíveis em um contexto moderno, torna-se um problema e apressa um casamento atado a necessidades materiais e financeiras. Por essas mesmas necessidades, em que Richard é obrigado a manter-se preso, a união termina: Margaret, na velhice, após uma vida toda no mesmo lugar do qual sempre desejara afastar-se, abandona o marido. Tudo que resta a Richard é a mesma velha casa e possibilidades irrealizadas da imagem (o sonho de ser desenhista que tivera de abandonar para poder sustentar a família).
Mas enquanto a decadência avança a nível narrativo, algo sempre é conservado também pela imagem. E só ela o pode. Ao conhecer a casa, Margareth dissera “Eu viveria aqui para sempre”. Mas a palavra não tem a eternidade da imagem (a não ser que, como acontece na Criação, ela mesma se torne imagem), tampouco a mesma impossibilidade da mentira. A palavra (narrativa) apenas reproduz ou descreve aquilo que nossos olhos contemplam a cada vez, que pode ser uma imagem viciada por séculos de acomodação. Por isso a necessidade da restituição da realidade de que fala Bazin (2018). É apenas a imagem que garante uma unidade do real, na medida em que garante o fio de continuidade entre as gerações que passam pela casa, entre os eventos em seus núcleos, mas também entre cada evento que incidiu sobre aquele espaço em que a casa está recortada.
Imagem essa plenamente digital: somente a tecnologia digital permite preencher os espaços de uma mesma casa com as marcas das mudanças temporais sem alterar o continente físico. O plano geral que abre a mostrar a casa em sua primeira configuração não se muda, nem mesmo quando voltamos à pré-história: passa-se de um tempo a outro com os contornos artificialmente demarcados pela split screen a marcar fenomenologicamente duas mônadas fantasmas, estranhas uma à outra em um mesmo ponto do espaço-tempo, mas que, sendo a existência esse continuum analógico, estão, desde sempre, eternamente unidas; afinal, antes de existirem, são. Uma pequena interposição da casa ao mesmo espaço, porque nada se mudou um único milímetro (nem a câmera, nem o corte, nem o ângulo), é capaz de mostrá-la ali onde estava predestinada a estar desde sempre. Maneira estranha e assustadora de transportar o interdito para o interior do enquadramento, como queria Bazin – “Internar a diferença é salvar a representação”, conclui Daney (2016, p. 60) em uma fórmula preciosa. Algumas coisas mudam, sem nunca perder, contudo, uma relação essencial. Há sempre um canto da imagem, um quadrado em tela, um elemento, que se mantém para ligar, pela montagem, à situação visual seguinte, impedindo a montagem de ser tanto totalmente linear quanto totalmente paralela.
Aqui entra a significação opaca de outro termo que Bazin não utiliza em vão: a imagem (imago) ou figura conforme era concebida pelos escolásticos. Erich Auerbach, que a reencontrou na visão da realidade que informava a obra de arte na Antiguidade tardia e na Idade Média cristã, define-a melhor que ninguém em seu seminal Mimesis:
um acontecimento terreno significa, sem prejuízo da sua força real concreta aqui e agora, não somente a si próprio, mas também um outro acontecimento, que ele prenuncia ou confirma; e a conexão entre os acontecimentos não é vista preponderantemente como desenvolvimento temporal ou causal, mas como unidade dentro do plano divino, cujos membros e reflexos são todos os acontecimentos (Auerbach, 2021, p. 601).
Toda imagem feita sobre uma base denotativa no cinema, se o filme fosse capaz de rastrear cada acontecimento ou objeto à sua essência, isto é, ao que a liga ao ser, faria isso, na visão baziniana. Filme construído quase exclusivamente sobre a montagem, algo que foi criticado por Bazin a respeito daqueles outros filmes que, com isso, desrespeitavam a integridade e a concretude do real, e considerado característica da era muda do cinema de atrações, Here alcança, com isso, um efeito diferente, pois usa a característica associativa básica da montagem para lançar luz à própria imagem e a como ela, vista em sua essencialidade, já traz em si essa característica.
Tomemos, por exemplo, o quadro, belíssimo em sua artificialidade tanto quanto em sua idealidade, de uma tríplice sobreposição: Margaret acabara de dar à luz seu filho; no tempo pré-civilizacional, o casal indígena está também com seu bebê, e a imagem reúne os dois na mesma ordem (Imagem 8). O casal está mostrando a lua (talvez sua deusa) a seu filho. Richard, que segura o seu, mostra-lhe duas luas que, ambas não-auráticas, ambas de um tempo que não sabe mais olhar para a natureza como guardiã da essência divina, não possuem mais que seu valor de representação: a lua da rua além da janela e a lua do quadro que acabara de pintar. O destaque do split screen já fixara para nós a lua dos tempos de Richard, com o contorno da casa abaixo, e o reunira ao cenário da natureza crua no tempo pré-civilizacional em que o casal indígena se desenrola (afinal, é a mesma lua, e o que muda é menos o tempo passado que a maneira como cada um desses diferentes tipos de homem, em suas épocas, encara-a). Agora, superpõe esse cenário a lua da janela de Richard e sua lua pintada (Imagem 9).


Que maneira maravilhosamente rebelde de cumprir uma das mais fundamentais regras bazinianas burlando-a (ou burlar cumprindo-a?): “Quando o essencial de um acontecimento depende de uma presença simultânea de dois ou mais fatores da ação, a montagem fica proibida” (Bazin, 2024, p. 98); talvez pela crença maior nesta outra, igualmente importante, regra baziniana: “expressar tudo sem retalhar o mundo, […] revelar o sentido oculto dos seres e das coisas sem quebrar sua unidade natural” (Bazin, 2024, p. 109). Por isso, talvez até se possa arriscar falar em um “maneirismo baziniano”, se a ousadia conceitual não for muita. O mundo não é retalhado e, desta feita, uma linha de sentido que de nenhum outro modo se poderia vislumbrar é revelada graças à edição mais artificial de todas. A graça: tudo ali é representação. A lua pintada por Richard o é tanto quanto a lua que vê do lado de fora, quanto a imagem idílica do homem em estado de natureza. Isso é verdade tanto a nível de relação entre as personagens e seus contextos, quanto entre as imagens do filme, que fazem questão de serem absolutamente honestas conosco no que têm de artificial.
Arriscamos dizer, portanto, que talvez não se encontre, nos últimos anos, filme que cumpra mais a necessidade básica de “vencer o tempo pela perenidade da forma” (Bazin, “Ontologia da imagem fotográfica”. In: O que é o cinema?, 2018, p. 28) que Here. Quando tudo o mais se dissolve, a imagem é conservada como se conserva, narrativamente e esteticamente, na última memória da mulher com Alzheimer. Richard, que, mesmo após a esposa tê-lo abandonado, consciente de sua situação, resolve acolhê-la novamente em casa e cuidar dela, mostra-lhe uma vez mais aquela imagem que teve diante de seus olhos por tanto tempo e que nós também tivemos. Junto a isso, o filme, concedendo sentido dialético ao trabalho de concentração da decupagem que fora realizado até então, reserva para esse último momento a visão dos outros cantos da casa para além do plano geral ubíquo que tínhamos. Quando essa nova imagem nos chega, agora de uma simples casa que não precisa mais de efeitos digitais para impressionar, experimentamos uma espécie de recuperação do cotidiano que Bazin sentia como necessidade e mesmo como uma espécie de missão do cinema. A câmera é a única capaz de nos mostrar de um outro jeito aquilo que nossos olhos se acostumaram a ver. Eis a restituição da realidade à realidade.
Conclusão: o “bazinianismo” pertence ao futuro?
Após tantos e tantos filmes, tantas e tantas técnicas, como Bazin já a seu tempo notou, o cinema foi cada vez mais perdendo tal capacidade. Não parece mais tão estranho que o digital, aquilo que de mais diametralmente oposto poderia haver, em essência, a esse intento, venha, pois, render a tarefa.
‘Olhe’, os primeiros espectadores do cinematógrafo dos Lumière exclamaram, apontando para a as folhas das árvores, ‘olhe, elas estão se movendo!’. Que longo caminho o cinema tem percorrido desde aqueles tempos heroicos, quando multidões ainda eram satisfeitas com a crua reprodução de um galho balançando ao vento! (Bazin, 1997, p. 6, tradução nossa).
Hoje, passados 130 anos, talvez seja uma cultura ainda “nova”, que ainda nos permita estar constantemente em descoberta, como o digital, a única possibilitadora de um olhar que descubra no mundo o que Bazin conseguia extrair de objetos muito mais singelos. Em um mar de falsidade generalizada, de shows de prestidigitação, tanto no digital quanto na película, são alguns exemplos extremos, para manter o paradoxo (já que o realismo é sempre algo paradoxal: tirar o tudo do nada, e vice-versa), que mais conseguem excitar nossa curiosidade por pensar como seria se alguém como Bazin estivesse vivo para reagir a tantas revoluções — e se o cinema estivesse pronto a se deixar moldar uma vez mais por seu pensamento.
REFERÊNCIAS:
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BAZIN, André. Farrebique, or the paradox of realism. In: BAZIN, André. Bazin at Work: Major Essays & Reviews From the Forties & Fifties. Trad. Alain Piette; Bert Cardullo. New York: Routledge, 1997, p. 103-108.
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