Bernardo Klaus
Falar sobre Leos Carax e não se lembrar de Denis Lavant correndo nas ruas vazias de Paris ao som de Modern Love em Sangue Ruim (1986), ou do mesmo tocando acordeão e liderando uma banda dentro de uma igreja abandonada em Holy Motors (2012) é quase impossível, enfim, o uso da música sempre foi destaque na curta filmografia do diretor (apenas 6 longas lançados em mais de 40 anos de carreira), mas somente em 2021 foi lançado seu primeiro filme musical de fato: Annette.
A artificialidade e o digital
Desde o início do filme, Carax monta Annette como uma grande farsa — na primeira cena do filme os atores pedem ao público a permissão para começar a narrativa — a relação do longa com seus ambientes sempre se dá por uma artificialidade e uma tentativa de transformar qualquer local em um palco para que os atores tenham sua presença física como o principal fator do plano. Fator esse que não é nada novo nos filmes de Carax; mas se anteriormente essa presença se destacava pela expressividade corporal ágil e encantadora de Lavant, aqui ocorre o oposto, com Adam Driver tendo uma fisicalidade carregada e rígida na tela, que só aumenta conforme o personagem vai se deteriorando.
Essa encenação farsesca é potencializada também pelo uso da câmera digital (uma Sony VENICE), que acaba criando um tom onírico para o filme, especialmente quando o jardim que envolta a casa do casal é filmada. No início do filme ele possui um tom paradisíaco: os dois caminhando sob a grama cantando “we love each other so much”, como se estivessem vivendo em seu próprio Éden.

Porém a partir do momento em que o lado hostil de Henry começa a surgir, é como se Ann estivesse presa neste jardim, como se este, representasse seus sentimentos.

A maneira como Carax estiliza seus cenários, novamente para dar ênfase a essa artificialidade, acaba sendo extremamente alegórica, pois sempre está buscando representar os sentimentos de seus personagens. Algo extremamente parecido pode ser visto em Lady in the Dark (1944), que tem cenas bem parecidas com Annette – inclusive pelo azul que se destaca – sempre remetendo ao sentimento de angustia e incerteza que vive a personagem.
Mas se nele a incerteza da personagem de Ginger Rogers é o que move a narrativa, em Annette o oposto acontece, com Henry em momento nenhum negando seus sentimentos ou vontades.

A cena clímax do filme – onde o casal discute no barco em meio a uma tempestade – é o extremismo dessa artificialidade alegórica em Annette. Carax não faz questão alguma de tornar aquelas ondas naturais, justamente para tornar aquele ambiente o mais farsesco possivel, e como mencionei anteriormente, transforma-lo em um palco. É uma cena que destaca as influencias clássicas do filme; Henry pela primeira vez se posiciona acima de Ann – elemento essencial em dramas hollywoodianos da era de ouro — pois é a primeira vez em que de fato mostra seu lado animalesco para ela.

A (des)omissão do profilmico
O conceito de opacidade, apresentado por Ismail Xavier em seu artigo Do naturalismo ao realismo crítico, trata-se de quando o filme não busca omitir seu dispositivo, ou seja, não omite seus meios de produção e sua linguagem. O autor traz esse contraponto em relação ao método da Hollywood clássica, que constrói uma tendência para que filmes escondam a presença da câmera, para que haja uma maior imersão de seu espectador, ou seja, uma “janela transparente”.
Porém tratando de musicais, pode se dizer que jamais houve uma busca pela transparência, a verossimilhança nunca foi preocupação para seus realizadores – o que causa uma resistência maior por parte do grande público com o gênero – porém, ainda que em seus filmes clássicos a música e as coreografias de fato façam parte da diegese do filme, a narrativa era contada de forma clássica, por meio de diálogos. Mas em Annette, Carax leva o gênero ao extremo, sendo o filme praticamente todo cantado, quase como se fosse um álbum conceitual (o que não é impressionante, visto que o projeto foi criado pelos irmãos Mael, da banda Sparks).
Ainda sim, Carax cria um melodrama clássico, que remete aos filmes de Vincente Minnelli (curiosamente não em seus filmes mais famosos, ou seja, seus musicais); em Tea and Sympathy (1956), existe uma cena que é o ápice da construção artificial do Minnelli. Nos momentos finais do filme, quando os dois protagonistas revelam seus sentimentos um pelo outro, há um abandono do realismo que o longa possui, onde Minnelli abusa de uma hiperestilização que dá um tom quase mitológico para seus personagens. Não apenas por também se tratar de um jardim, essa cena remete a Annette pela maneira com que aqueles dois pertencem a aquele local de maneira transcendental: a luz da lua que reflete em seus rostos, as árvores, o vento. Também há a representação de aquele local ser o Éden deles, onde irão consumar o pecado original.

Mas se em Tea and Sympathy, Minnelli segue uma lógica de encenação naturalista para no final criar uma artificialidade para impactar seu espectador, Carax faz o oposto, na cena de fechamento do filme transforma seu maior elemento artificial em algo natural – Annette, que antes era um bebê de madeira, se transforma em uma criança de verdade – e cria um dos momentos mais tocantes de sua carreira.
