The Batman e suas raízes cinematográficas
O Cruzado Encapuzado, filho legítimo de uma cidade amaldiçoada, sombra que se torna a luz que trará redenção aos cidadãos condenados. Criado em 1939, Batman é um heroi dos quadrinhos da editora DC que já recebeu diversas adaptações para o cinema, com a mais recente tendo sido The Batman (2022), dirigida por Matt Reeves e estrelada por Robert Pattinson. Ao aceitar o projeto, o diretor teve em suas mãos um grande desafio pela frente: honrar os filmes anteriores do heroi, que teve tantas representações diferentes ao longo da história do cinema, se aproveitando-se de diferentes técnicas em interpretações alegres, góticas e realistas, passando por distintos diretores: Tim Burton, Joel Schumacher, Christopher Nolan e Zack Snyder.
The Batman surgiu de técnicas modernas de produção alinhadas a uma linguagem carregada de tradição de um cinema clássico em sua narrativa. Técnicas que se utilizam da ilusão para dar vida à uma cidade sombria e amaldiçoada pelo crime, e que remetem às origens do cinema. Quando a sétima arte ainda estava dando seus primeiros passos, na época dos irmãos Lumière, o que encantava os espectadores já era a ilusão cinematográfica. O irreal em tela, o “desejo de ser” gravado em película. O cinema sempre se mostrou como uma das formas mais poderosas de tornar real o impossível, e foi a partir desta premissa, desta mescla de real e irreal, que a linguagem cinematográfica se transformou ao longo de mais de 100 anos.
Para evidenciar essas técnicas de ilusão, peguemos como exemplo uma cena clássica do filme Psicose (1960), dirigido por Alfred Hitchcock. A personagem Marion Crane, interpretada por Janet Leigh, dirige seu carro em uma avenida falsa, que na realidade é uma projeção sendo feita atrás do veículo. Este era um truque comum da época, uma ilusão de movimento que resolvia um problema de produção.
Em De Olhos Bem Fechados (1999), filme dirigido por Stanley Kubrick, vemos o personagem de Tom Cruise caminhando pelas ruas de Nova York à noite. Em arquivos dos bastidores, é possível ver que, nas filmagens, Tom Cruise estava andando em uma esteira enquanto uma tela atrás dele era projetada com a imagem de uma calçada, criando também uma ilusão de movimento. O motivo disso foi burocrático: o filme estava sendo filmado na Inglaterra, e a história se passa em Nova York. Kubrick, que morava no Reino Unido, optou por construir cenários de Nova York nos estúdios de Pinewood, onde estava filmando o longa. Dessa forma, foi possível reproduzir a icônica cidade americana do outro lado do mundo.
Atualmente, na era tecnológica, o céu é o limite. Diversas técnicas avançadas são utilizadas para dar vida ao que parece impossível: seres místicos, mitológicos e fantasiosos. Outras técnicas vão por um caminho diferente, onde são utilizadas para dar praticidade e/ou velocidade à produção de um filme, e foi a partir desse tipo de necessidade que se deu a escolha da técnica que deu vida à Gotham de Matt Reeves: o Volume.
The Batman e o domínio da tecnologia Volume
Desenvolvido pelo australiano Greig Fraser, diretor de fotografia de The Batman, o Volume (anteriormente conhecido como StageCraft) é um estúdio circular que consiste em enormes telas de LED que projetam cenários digitais construídos através de computação gráfica. É uma alternativa à clássica tela verde que sempre esteve tão presente no cinema contemporâneo, especialmente nos filmes do gênero de heroi. Durante a gravação, a equipe tem a possibilidade de ver o cenário em tempo real, e editá-lo a fim de melhorar as proporções, alterar a luz de forma a ter uma melhor influência dela sobre os corpos em cena.
O primeiro trabalho de Fraser com a tecnologia foi na série The Mandalorian (2019), onde o uso do Volume veio para resolver um problema de produção: a armadura cromada refletia o fundo verde, dificultando o uso do chroma key nas gravações da série. O Volume ilumina o pró-fílmico (o que está fisicamente diante da câmera) com sua própria luz, eliminando a necessidade de um fundo verde, consequentemente excluindo o problema do reflexo na armadura.
O trabalho do australiano nesta série foi o que convenceu Reeves a chamá-lo para The Batman. Nas mãos de Fraser, essa tecnologia atinge seu ápice. Um dos motivos para a proposta ter gerado interesse em Reeves pode ter sido o fato do próprio diretor já demonstrar domínio de diferentes tecnologias em seus filmes desde que assumiu a série “Planeta dos Macacos”, com Planeta dos Macacos: O Confronto (2014) e Planeta dos Macacos: A Guerra (2017). Um dos personagens principais dos filmes é Caesar, o chimpanzé geneticamente modificado, líder da revolução dos macacos. Vivido por Andy Serkis, o personagem foi criado por meio da tecnologia de captura de movimento, que transforma a performance do ator em um modelo digital animado. Isso exemplifica o termo “animagem”, quando temos essa mescla de elementos reais com animações completamente CGI, mas que são feitas a partir de expressões humanas. Reeves demonstra domínio da tecnologia ao lidar com um personagem inteiramente digital repleto de nuances.
Outro diretor que é bem conhecido pela utilização de efeitos digitais em seus filmes é o norte-americano David Fincher, muito conhecido pelas suas obras Clube da Luta (1999) e Garota Exemplar (2014). Seven – Os Sete Crimes Capitais (1995), outra obra muito famosa de Fincher, serve de bastante inspiração para The Batman. A inspiração no clima sombrio e misterioso é muito notável no filme de Reeves, bem como a inspiração da narrativa de serial killer. Essa inspiração não se nota apenas na questão narrativa, mas também na produção. Fincher é um diretor muito conhecido pela utilização de tecnologias para atingir o ponto desejado em seus filmes, mais especificamente a partir dos anos 2000.
Em arquivos do set de filmagens de Garota Exemplar, vemos como o diretor utiliza uma mescla de tela verde com cenários reais para criar exatamente a imagem final que deseja. Na série Mindhunter (2017), há planos que parecem ter sido feitos inteiramente por computação gráfica, mas tal percepção só é feita ao ter acesso aos bastidores de suas produções. Durante a exibição da obra, tudo isso passa despercebido. Hoje em dia, a impressão é de que o pró-fílmico já se diluiu completamente no digital, e tudo o que vemos hoje em dia é uma mistura de real com virtual. A luz, que anteriormente era uma resposta ao ambiente, agora pode ser gerada pelo computador.
O Volume pode ser visto como uma evolução dos truques antigos, alinhada ao que a tela verde propõe. São cenários que parecem reais, que de fato iluminam os atores em cena, mas advindos de uma tecnologia que possui uma notável praticidade, com paineis que podem ser alterados a qualquer momento de acordo com a preferência da equipe. Com essa tecnologia, foi possível para Matt Reeves e sua equipe criarem uma cidade que não era apenas um cenário, mas que carregava uma identidade forte, uma vida. Luzes frias, vermelhas e distorcidas, como se tudo estivesse prestes a desabar (o que, de fato, seria evidenciado ao longo do filme).
Na cena em que Selina diz a Bruce que é filha de Salvatore Maroni, temos um exemplo de um ótimo uso da tecnologia de Fraser. A luz, projetada pelo Volume, é um instrumento fortíssimo: ela evidencia o conflito entre os dois personagens, expondo o grande impasse que vivem no momento. É uma relação conflituosa, que parece querer chegar a algum ponto, mas não chega. A tecnologia aqui não é utilizada apenas para facilitar questões de produção, mas também para dar vida e identidade ao filme. Vale destacar também as ótimas atuações de Robert Pattinson e Zoë Kravitz.
É possível dizer que, na época das gravações de The Batman, Pattinson era um ator em ascensão. O britânico havia acabado de estrelar Bom Comportamento (2017), dos irmãos Ben Safdie e Josh Safdie, e utilizou seu talento para dar vida a um Bruce Wayne jovem, rancoroso e sombrio, que estabeleceria uma conexão com a cidade do personagem, uma Gotham sombria, sórdida, escura e misteriosa. Essa cidade foi construída para refletir a própria imagem do heroi, e isso fica bem explícito no monólogo inicial do filme, onde ele diz: “Eles pensam que estou me escondendo nas sombras, mas eu sou as sombras”. Essa cidade reflete o Batman. Ele foi moldado nela, cresce a partir dela, mas ela também ganha identidade a partir dele. É uma relação mútua. Em The Batman, o desafio era construir uma Gotham que tivesse identidade própria, mesmo que a ideia ainda fosse mais “pé no chão” do que em filmes anteriores como Batman Eternamente (1995), de Joel Schumacher, porém mais viva do que nos filmes do diretor americano Christopher Nolan.
Para comparação, usaremos como exemplo uma sequência de Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012), a batalha em larga escala que ocorre no último ato do filme, contando com o embate final entre Batman e Bane. Aqui, nota-se como o universo de Nolan se diferencia das demais adaptações: uma Gotham realista, tão contida que chega a carecer de identidade. A busca por uma verossimilidade excessiva leva a cidade fictícia a parecer com uma representação qualquer de Nova York. Nolan utilizou diferentes locações para filmagens e coordenou uma coreografia complexa entre os figurantes, um trabalho que demanda muito esforço, mas que não é convertido em personalidade. Toda a construção gótica ou exagerada que havia anteriormente é apagada para dar espaço a um realismo, que, no final, acaba por descaracterizar a cidade.
Neste caso, uma sequência de The Batman que merece destaque é quando Bruce vai atrás de Oswald Cobblepot, o Pinguim, numa incrível perseguição de carros em uma avenida movimentada. Chuva pesada, explosões, batidas de carro e a icônica imagem do homem-morcego de cabeça para baixo. Nesta cena, Reeves e Fraser nos mostram outro genial uso do Volume: o não uso dele. A cena mescla uso da tecnologia com o uso de cenários reais, e saber exatamente qual cena vai necessitar de uma verossimidade maior é o que define o bom uso da ferramenta. É o que mostra que seu utilizador sabe o que está fazendo. Mais do que tudo, mostra como o diretor está preocupado em dar vida ao seu filme.
O desfecho do terceiro ato é de extrema importância para entender a delicadeza com que Reeves está tratando o heroi. Antes um vigilante, uma lenda, agora um salvador para os cidadãos da cidade marcada pela tragédia. A técnica do Volume aqui, não apenas uma praticidade para a produção, também ajuda a evidenciar essa nova imagem do heroi: o nascer do sol que traz a salvação. É sobre esta luz projetada pelo Volume que o personagem que iniciou o filme se introduzindo como “eu sou a vingança” agora termina o filme dizendo: “Vingança não vai mudar o passado. Nem o meu, nem o de ninguém. Eu preciso me tornar mais. As pessoas precisam de esperança, saber que tem alguém lá pra ajudar. A cidade está com raiva, cicatrizes, como eu. Nossas cicatrizes podem nos destruir, mesmo depois da ferida estar curada. Mas, se nós sobrevivermos, elas podem nos transformar. Podem nos dar o poder de resistir, e a força para lutar.” Uma cidade desolada, inundada, à mercê ratos que se aproveitarão do momento de fragilidade e tentarão romper cada canto sagrado que ainda resiste. O heroi, que antes só aparecia durante a noite, se revela à luz do dia, se revela a luz que trará redenção aos cidadãos condenados.
O Volume é uma faca de dois gumes. Apesar de ser tecnologia bastante útil, ela não deve ser vista como uma evolução da famigerada tela verde. É uma ótima alternativa quando utilizada corretamente, porém, segundo o próprio Fraser, quando os efeitos são “usados gratuitamente ou por pura diversão, eles se destacam e se tornam óbvios”. Nas mãos de um diretor de fotografia que saiba utilizá-lo, como é o caso de seu próprio criador, é uma extrema potencialização do cinema.
É exatamente isso o que toda ferramenta para criação de filmes necessita: um verdadeiro artista que saiba utilizá-la e criar cenários artificiais que agreguem ao filme. No caso de The Batman, para evidenciar o rancor impregnado na cidade, o ar sujo que permeia as ruas e o nascer do sol que promete trazer esperança para os cidadãos dessa cidade. A magia do cinema é a mentira, a ilusão. Se é possível utilizar a tecnologia para potencializar essa ilusão, então ela pode e deve ser utilizada para tal meio. De Burton a Reeves, a luz que ilumina a cidade de Gotham, seja ela natural ou artificial, sempre refletirá o âmago de seu realizador.